18/02/2018
Depois da I Grande Guerra os espíritos tinham trocado de roupa e Paris se tornou o destino comum para dezenas, talvez centenas de artistas do mundo todo. Muito porque a cidade cosmopolita era uma cidade mais livre, mas principalmente porque no pós-guerra o dinheiro francês não valia nada e um estrangeiro pobre (escritor, pintor, poeta) podia viver com pouco.
Foi Ernest Hemingway quem celebrizou os loucos anos 20 com seu Paris É Uma Festa. Ele escreveu certa vez que com os 10 dólares que recebia por um conto publicado na América podia sobreviver meses escrevendo, comendo, bebendo (claro que nem sempre nessa ordem).
A sopa de cebolas barata e consistente que se servia no Les Halles (e nas biroscas ao redor) preparava os trabalhadores para a jornada puxada da manhã. Era a hora em que os bares fechavam e a exótica fauna de boêmios baixava em busca daquele milagre, o caldo l'oignon.
A receita da sopa remonta ao império romano e é um clássico francês, mas foi no Les Halles que sua fama ganhou o mundo – e chegou no Ceagesp, antigo Ceasa, mercadão paulistano que nos anos 60 e 70 tinha um restaurante pra atender os trabalhadores com seu caldo pela manhã. Ali também notívagos tardios (“artistas, gente do teatro, o pessoal das boates”) baixavam em busca de salvação num tempo em que São Paulo fechava cedo.
Só fui experimentar a sopa de cebola já adulto, quando eu e minha dulcíssima Maria Angélia Abramo dividíamos as panelas pelos anos 80. Décio Abramo, o pai dela frequentava o Mercadão e num dia de visita preparou pra gente aquela comida de alma. Tinha aprendido a receita observando o movimentos na cozinha aberta do mercado.
Décio era um artista plástico tremendo, primo do Cláudio (com quem trabalhei na Folha de SP), sobrinho de Livio, irmão do gravurista Chico Rosa e da crítica de arte Radha Abramo. Nos anos 60 Décio expunha na Praça da República ao lado de outros artistas (Manabu Mabe entre eles) que estavam transformando a República em feira de artes, talvez a primeira, não sei, mas a mais conhecida do Brasil. Tenho saudades dele.
Esses dias estava relendo o delicioso Achados da Geração Perdida, de Suzanne Rodriguez-Hunter, uma seleta de receitas dos artistas da Paris da década de 20 – e lembrei do Décio e de sua sopa de cebolas, quase duplicata da receita do Les Halles.
Sempre que lembro de meu amigo querido me vem à cabeça o Décio metido com pincéis e panelas – e foi vendo ele cozinhar que percebi as diferenças enormes entre a cozinha italiana de meus avós camponeses e a comida italiana dos imigrantes urbanos, italianos cosmopolitas como os abramos que reinventaram São Paulo. Uma vez vi a Radha preparando um sugo; a certa altura ela jogou no caldeirão de tomates ferventes, sem culpa, uma beringeja inteira. Fiquei sem ar.
Dia frio como hoje, dá saudade da sopa. Pedi ajuda pra Maria Angélica, que é a guardiã da receita do pai. Segui o roteiro que ela mandou e me segurei pra não inventar moda: primeiro meio tablete (100 gramas) de manteiga (“engordativa”, seguindo Maria), depois um quilo de cebolas coradas finamente fatiadas a faca fritas e mexidas até ficaram transparentes e depois caramelizarem; é nessa hora que você deixa o chefe francês encarnar em forma de roux: despeja a farinha de trigo lentamente, vai mexendo com vigore e quando a farinha estiver dando liga é só ir despejando água fervente aos poucos, acertando o sal e achando a textura de caldo (não creme). O melhor vem depois: disponha o caldo numa cumbuca e leve ao forno com uma fatia de torrada e queijo parmesão ralado pra gratinar.
Muita gente usa caldo de carne ao invés de água, a receita tradicional pede o profundo gruyere ao invés do picante parmesão, algumas receitas sugerem a torrada esfarelada tipo croutons depois de levado ao forno o caldo e (ó deus!) tem quem troque a manteiga por azeite. Até a Maria Angélica está cheia de novidades: ela anda usando farinha de arroz ao invés da farinha de trigo. Fique louco pra experimentar.