18/03/2018
To com a água fervendo chiando no fogão pra fazer um caldo de missô e vem à memória meu primeiro missoshiru na casa de Hosuke Minowa. Foi quando Tizuka Ymazaki veio a Londrina lançar seu Gaijin, retrato sensível dos primeiros anos dos japoneses nas fazendas de café do interior de São Paulo. Era 1980 e só agora uma nissei ganhava prêmios no cinema contando a historia da difícil adaptação de seus avós imigrantes no sertão brasileiro: não havia arroz, não havia legumes ou verduras, a língua, as roupas, os costumes remetiam a um outro planeta, o planeta do gaijin, que era como os japoneses chamavam os estrangeiros nos 300 anos em que o Japão fechou seus portos para as naves estrangeiras.
Os japoneses foram os primeiros imigrantes a poupar com o trabalho nas fazendas de café e comprar terras no norte do Paraná. A primeira família se instalou em Londrina em 1928 – pelas bandas do que viria ser o aeroporto, onde os minowas tinham sua pequena propriedade, a Chácara Canaã. Cinquenta anos depois a comunidade nikkei era ainda uma comunidade fechada em seu dilema: abrir as portas para as contradições da brasilidade (como já estavam fazendo os netos dos pioneiros) ou se fechar em seu mal estar seminal – a síndrome do estranho.
Naquela casa dos minowas a contradição não parecia ser problema. Na minha estreia no cotidiano daquela família pra lá de diferente, na cozinha de Naoko Minowa, depois de tomar a sopa de misso, fui confrontado com minha limitada visão do que era de fato a antropofagia: comi feijão gordo (feijão preto na gordura do porco defumado) com gohan, o arroz cateto sem temperos – aquilo me era totalmente inédito, não cabia na equação negros brancos e índios. E era delicioso.
Quem me colocou dentro da casa foi Nelson Minowa, parceiro na Cooperativa. Quando perguntei se ele conhecia algum imigrante que tivesse passado pelas experiências descritas no filme da Tizuka, me falou de seu pai. Fui à sessão de estreia com Hosuke, ele se emocionou muito revendo cenas de um passado que poderia ser o seu. Depois da sessão trocou ideias com a Tizuka (engraçado, nesta mesma noite a Tizuka Yamazaki ganhou do José Joffily uma biografia escrita por ele, que morava em Londrina, sobre Anayde Beiriz, que seria tema de um de seus filmes seguintes. Vinte anos depois Tizuka voltaria a Londrina para filmar Gaijin II).
Hosuke era uma pessoa sorridente, sempre de bom humor – e havia alguma coisa meio fora do padrão na sua vida com a esposa e filhos. Num tempo que não existia controle remoto ele sentava em frente à TV com as pernas esticadas e trocava os canais com o dedão do pé – um jeito meio primitivo de zapear. Outra coisa inusual: todo o dinheiro da família ficava numa gaveta, quem precisasse ia pegando, o controle era compartilhado. As pistas do forte apelo comunal da casa me levaram à juventude de Hosuke na comunidade de Yuba, que marcaria não apenas a sua, mas a vida dos descendentes.
A Comunidade de Yuba foi criada em 1935 no interior de São Paulo, quando o imigrante Isamu Yuba se instalou com sua família em Mirandópolis e constituiu ali um núcleo de vida socialista. Yuba era leitor de Tolstói, tinha aquela utopia da vida comunal e convenceu um grupo de amigos a partilhar a experiência. Yuba era um visionário: na década de 30 escreveu ao presidente Getulio Vargas alertando para o desgaste da terra em atividades de monocultura – ele propunha utilizar a adubação orgânica pelo erterco saído dos enormes viveiros onde a comunidade criava aves e produzia ovos.
Mais tarde viajei com Alam Minowa e passamos uma semana em Yuba trabalhando nas plantações de tomate, limpando os criadouros, lendo na biblioteca de 10 mil volumes, ouvindo as crianças nas aulas de piano enquanto mutirões organizavam as refeições para a centena de moradores. À noite fazíamos ofurô, bebíamos e comíamos, assistíamos aos ensaios do balé e do teatro no mesmo galpão onde à tarde selecionávamos os tomates.
Durante a Guerra Mundial, tempo de perseguição policial aos japoneses, muitos procuraram amparo na comunidade, e Yuba recebeu a todos. Depois da guerra as famílias se dispersaram – e Hosuke guardava uma certa dor de ter abandonado a experiência socialista. Mas na casa dele, a vida que se vivia era parecida com aquela em que as pessoas se tratavam como iguais.
Escrevi longas reportagens sobre a Colônia Yuba, uma delas enorme para a revista PLANETA que acabou pautando jornalistas do Brasil inteiro. Reencontrei várias vezes muitos dos amigos que fiz por lá. Lembro desse tempo e descubro o que significa a expressão amizade eterna.
Alí mesmo naquela chácara do meu primeiro missoshiru, o Alam e o Romeu, amigos de universidade iniciaram uma nova experiência comunal amparada nas comunidades Yamaguishi do Japão. A turma toda se mudou pra lá, anos depois constituiu um núcleo brasileiro em Jaguariuna, a Vila Yamaguishi. Ali se desenvolveu uma das mais consistentes inovações na produção de ovos orgânicos no Brasil: as aves crescem em liberdade, se alimentam com a produção da horta e seus ovos são fertilizados. Alam me contou certa vez que quando aparece por lá, o médico Lair Ribeiro, guru da alimentação funcional come uma dúzia e ovos de uma só tacada. Ribeiro propala que o ovo é o principal alimento humano depois do leite materno.
Naquele meu debut na cozinha de Naoko Minowa, espantei-me de novo quando ela finalizou o missoshiru com um ovo cru escaldado no thiauan de caldo fervente – outra coisa que eu nunca tinha visto, um ovo sem óleo, mas aquilo foi só o começo. Descobri depois pastas de missô artesanais produzidas por antigas famílias e vendidas na feira livre, passei a utilizar hashi e thiauan. O shoyu substituiu muito do sal na cozinha de casa. E comer sashimi nos bares da cidade com os amigos virou um costume arraigado.
Começo minha sopa de misso picando bem picadinho um pouco de nabo, de cenoura, cebola e vagem. Aqueço um pouco de óleo de gergelin e jogo os legumes para chiar na panela grossa. Despejo a água fervente, espero borbulhar, jogo a salga de peixe (ou o hondashi) e deixo cozinhar um pouco. Pego um pouco do caldo e dissolvo o missô numa xícara,devolvo à panela e apago o fogo: o misso é um fermentado, possui bactérias saudáveis que se perdem em altas temperaturas. Às vezes utilizo também algas marinhas e nas vezes que sinto falta de um carboidrato utilizo macarrão de arroz, o bifun. O toque final é a cebolinha finamente fatiada fechando a história. E que história!